A eterna luta entre as interpretações

Não é apenas como “correspondência” entre os fatos e as interpretações que a verdade se define. Uma interpretação também pode ser considerada verdadeira por ser coerente com outras interpretações, previamente, consideradas verdadeiras, por ser útil, porque todos estão de acordo com ela (consenso), embora toda unanimidade, como já dizia Nelson Rodrigues, seja burra. Com efeito, além dessas, existem inúmeras outras razões pelas quais os homens têm considerado interpretações verdadeiras: a persuasão, a bondade, a beleza, o poder, o desejo, o sonho, a embriaguez, o medo, a urgência, etc.

Com isso em vista, a questão que o perspectivismo coloca, em primeiro lugar, não é a da veracidade das interpretações, mas a da relação entre interpretações e fatos. E essa nunca é de correspondência exata, nem plena, pela simples razão de que interpretações não são fatos e fatos não são interpretações.

Por exemplo, o presidente Bolsonaro tem a interpretação dele acerca o que ele mesmo faz e fez. É uma perspectiva. O que importa aqui é que só temos como saber das consequências dessa interpretação por meio de outras interpretações acerca dessas mesmas consequências, seja daquelas que são a favor de Bolsonaro, seja contra ele. São outras perspectivas. O respeito à opinião divergente, à dissidência, à diferença, não passa de uma estratégia minimalista para evitar o “terror”. Esse consiste na transformação de interpretações em fatos com exclusão do divergente da discussão racional e na redução da multiplicidade a uma mera “unidade”, isto é, da diferença àquilo chamam de “identidade”. Vale observar que, stricto sensu, ‘Deus’ é, corriqueiramente, um nome utilizado para designar o “terror”.

Outro exemplo. Sem dúvida, in abstractum, na interpretação de um pedófilo, manter relações sexuais com crianças é bom, é o que lhe dá prazer a ele. Essa é a sua interpretação, a sua perspectiva. Entretanto, alguém que é acusado da prática da pedofilia tem direito de participar de um processo jurídico de determinação da verdade (princípio do “acesso universal à Justiça”). Ora, isso não significa que a interpretação do pedófilo (que antes do esgotamento de todas as vias recursais ainda é só um réu) seja verdadeira. Não somente porque essa interpretação não corresponda a um fato, mas sim porque ela também é incompatível com outras interpretações (da vítima, da polícia, da promotoria, do juiz, etc.) acerca do ocorrido. São outras tantas perspectivas. Qual deve ser considerada verdadeira?

No processo judicial, as perspectivas se organizam em um diagrama muito simples, constituído, basicamente, de dois polos apenas: o da acusação e o da defesa. Então, a luta começa. Uma perspectiva busca derrotar a outra, revirando seus efeitos. Aquela que vencer será, ao cabo, considerada verdadeira. Mas não porque ela corresponda, estritamente, aos ditos fatos, e sim porque ela resulta de um processo de luta entre interpretações (o “contraditório”, como se diz em direito). Ou seja, a verdade só surge no final do processo. É a partir daí que se pode falar, necessariamente a posteriori, em fatos, no caso, a prática de um ato de pedofilia. Logo, os fatos são o resultado do jogo entre as interpretações, e não o inverso.

Observe-se que o processo judicial não é uma série de fatos, mas uma interpretação, um discurso, uma série de enunciados. Vale esclarecer que, em direito, há um antigo brocardo que diz que “o que não está nos autos, não está no mundo”. Ora, mesmo que um fato novo apareça depois do fim do processo judicial (“trânsito em julgado”), tal fato não alterará a veracidade da sentença prolatada, pois, do contrário, haveria a possibilidade de processos que não nunca chegassem ao fim, perdendo-se em inúmeras tentativas de recurso. Assim, a luta pela verdade se encerra devido a uma necessidade prático-burocrática muito simples: é preciso finalizar os processos, dar um ‘veredito’, “bater o martelo”. Nos campos das filosofias, das ciências e das artes não é assim: a luta entre as perspectivas pode nunca terminar. Somente nesses campos, o agon é sem trégua nem termo.

Voltando ao exemplo. Um crime não é um fato, mas uma interpretação (no caso a da promotoria), que foi considerada verdadeira, ao fim de um processo judicial. Portanto, antes que se prove a prática de um crime, é preciso que haja um processo. Esse é um processo de determinação gradativa da verdade, em que precisa haver, necessariamente, “ampla defesa”, “contraditório” e uma tomada de decisão. Isso significa que o réu pode defender sua interpretação a respeito do que aconteceu e a colocar em disputa com a interpretação da acusação. O principal meio de prova judicial é a própria disputa entre acusação e defesa. Portanto, pode-se dizer que é essa luta entre perspectivas que define qual é a perspectiva que deve ser tida, ao final, como verdadeira. E ela o é, efetivamente, pelo menos até que seja contestada por uma outra interpretação. Então, recomeça a luta…

Foto por Sora Shimazaki em Pexels.com