A biopolítica da pandemia e o governo da humanidade

Para além do combate ao vírus, o que está em jogo é o governo dos seres humanos, “em defesa da vida”.

O advento das armas nucleares marca a história das tecnologias de poder de maneira indelével. A bomba atômica é inventada em 1945; segue-se a Guerra Fria e a corrida armamentista. No início da década de 1960, já havíamos alcançado a capacidade de exterminar, de uma só tacada, toda a população do planeta; bastava apertar um botão. Pela primeira vez na história, a humanidade tinha adquirido a capacidade de matar, por completo, a si mesma. Estávamos, sem dúvida, diante de uma altamente refinada tecnologia da morte (necropolítica), capaz de matar bilhões de seres humanos (além de outros seres vivos). E, por isso mesmo, estávamos diante de um certo tipo de governo que, pela primeira vez, tinha como alvo a vida de toda a humanidade, de todos e cada um, em todo o planeta Terra. As armas nucleares são uma espécie de coroamento do longo desenvolvimento de um tipo de poder que é muito antigo, mas que, só naquela altura, passava a incidir sobre a vida de todos os seres humanos: o poder soberano, isto é, o poder de “fazer morrer”.

Ainda não se pode dizer que a era nuclear tenha se acabado, mas parece que, recentemente, atingimos um novo limiar. Talvez, as políticas de combate à pandemia de Covid-19, que estão sendo testadas agora, já sejam indícios suficientes para que se fale no nascimento de um novo tipo de poder ou de uma nova forma de governo, um governo da humanidade, que já não visa fazê-la morrer, mas, pelo contrário, fazê-la viver. Estaríamos, assim, diante de um tipo de biopoder, isto é, um poder de “fazer viver”, cuja principal especificidade residiria em sua superfície de incidência: toda a humanidade.

Em Segurança, território, população, Michel Foucault explica que toda racionalidade de governo resulta da conexão entre três elementos básicos: o alvo, os saberes e as técnicas. O que decorreria de uma aplicação, ainda que minimalista, dessa grade de análise às políticas de combate à Covid-19?

Em primeiro lugar, uma vez que a doença se alastrou rapidamente pelos cinco continentes, pode-se dizer que o alvo dessas políticas é toda a humanidade, ou seja, mais de 7 bilhões de pessoas, o que dá uma ideia do tamanho dessa tecnologia de poder. Isso significa que tais políticas se destinam, em princípio, a todos, independentemente de raça, sexo, classe, idade, deficiência, origem, religião etc. Em um mundo onde atores tradicionalmente considerados “menores” (o negro, a mulher, o gay, o trabalhador etc.), com suas diferenças, passavam finalmente ocupar o primeiro plano, o grande tema da “humanidade”, em sua universalidade, volta com força total. Nesse sentido, vale lembrar, por exemplo, que nunca tínhamos estado diante de um processo de vacinação que englobasse o conjunto da população mundial, ou seja, de uma vacinação que fosse efetivamente universal.

Em segundo lugar, que saberes são mobilizados e, ao mesmo tempo, embasam essas políticas? Temos aí a integração dos mais diversos saberes, das ciências naturais, humanas e tecnológicas, e de diferentes instituições (universidades, centros de pesquisa, laboratórios), em torno de um objetivo comum. Destacam-se: a medicina, em particular a infectologia, a farmacologia e a medicina social, a biologia e a química, a estatística e a computação e, por fim, a psiquiatria e a psicologia. Uma vez que o vírus afeta a vida em vários de seus aspectos, o combate a ele mobiliza toda uma série de especialidades científicas, articuladas em uma rede transdisciplinar de proporções jamais vistas. Uma vez que o vírus é mutante, estão sempre surgindo novas cepas – é assim que esse ele sobrevive –, para combatê-lo, essa rede transdisciplinar também precisa ser mutante, atualizando-se constantemente. Portanto, as suposições de base ontológicas dessa rede de saberes têm de ser da ordem dos fluxos e do devir.

Em terceiro lugar, as técnicas empregadas no combate à Covid-19 são diversas, múltiplas e complexas. De início, trata-se de todo o aparato médico no sentido estrito: hospitais, prontos-socorros, clínicas, postos de saúde, onde se desenvolve o trabalho de médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, visando, basicamente, a normalização da saúde da população. Aqui, deve ser destacado o papel dos serviços públicos de saúde, os quais possibilitaram, efetivamente, inclusive nos países mais desenvolvidos, que centenas de milhões de casos fossem atendidos. É digno de nota que, no Brasil, esse papel é exercido pelo SUS.

Em seguida, tendo em mira o planeta inteiro, o governo da pandemia atravessa diferentes fronteiras, tanto do ponto de vista das estruturas macropolíticas quanto micropolíticas. No âmbito dos Estados, são mobilizados os diferentes poderes (executivo, legislativo e judiciário) e as diferentes esferas da administração pública (federal, estadual e municipal), bem como os aparatos policial e militar. No plano internacional, os Estados nacionais trabalham em cooperação entre si e conectados a organismos internacionais (OMS, ONU, Banco Mundial etc.). Os Estados também se conectam a empresas e corporações, de grande e médio portes, nacionais e multinacionais, bem como a organizações não governamentais etc. Trata-se de uma grande e densa rede institucional.

Por fim, outro elemento essencial na luta contra o novo coronavírus consiste no uso das tecnologias da informação e da comunicação (TICs), para a obtenção e armazenamento de dados (Big data) e na criação de algoritmos capazes de navegar através desses dados, identificando padrões de comportamento ajustáveis, que possam ter impacto sobre a evolução da doença. A mídia também cumpre uma importante função de difusão de informações e de orientação de hábitos. Em suma, o aparato técnico, público e privado, nacional e internacional, macro e micropolítico, transdisciplinar, disponibilizado para o combate à Covid-19 é imenso e bastante complexo.

Com essas definições de seu alvo (toda a humanidade), de seus saberes (uma complexa rede transdisciplinar) e de seu aparelhagem técnica (médico-político-computacional), o governo da pandemia não demorou a produzir efeitos de massa. Sem dúvida, houve uma grande mudança no comportamento da maioria das pessoas: o uso de máscaras, a lavagem frequente das mãos, o uso de álcool em gel, o distanciamento e o isolamento sociais, as restrições no ambiente de trabalho etc. Bilhões de pessoas vivem há quase dois anos praticamente confinadas em seus próprios lares. A liberdade de ir e vir foi restringida, assim como as interações humanas. As aglomerações foram proibidas, o que levou ao fechamento de locais de festa e bares, e criou um grande obstáculo para os movimentos multitudinários que, no início da década de 2010, pareciam ter a potência de mudar o mundo. (As manifestações públicas que ainda restam são, na maioria, neofascistas.) Com a prática dos toques de recolher e dos lockdowns, houve o fechamento do comércio e dos serviços considerados não essenciais, o que acarretou a limitação das atividades de trabalho e levou ao aumento das taxas de desemprego. Isso dá uma noção das proporções dos efeitos que as políticas de combate à Covid-19 já tiveram e terão sobre as populações.

Vale salientar que o custo de manutenção e expansão do aparato de combate à pandemia e de suas operações é muito alto. Em países pobres, cresceram a fome, o número de pedintes e a quantidade de moradores de rua. Só os ricos ficaram ainda mais ricos com a pandemia – o que demonstra que não se mexeu nos fundamentos processo de acumulação de capital, embora o comércio das vacinas tenha ocasionado a transferência internacional de vultosas somas de dinheiro. Pode-se dizer que os focos de concentração de poder da geopolítica multipolar atual coincidem com os fabricantes das principais marcas de vacinas (EUA, China, Reino Unido e Rússia). Mas, em geral, o que existe é uma recessão na economia mundial e um expressivo aumento do endividamento dos Estados. Nunca a ideia de que se deve salvar vidas a qualquer custo tinha sido capaz de convencer tantos neoliberais. Com a pandemia, o déficit fiscal (motivo efetivo do impeachment de Dilma, em 2016, que não foram as famosas “pedaladas contábeis”, mas o “conjunto da obra”, como se dizia na época) parece ter se tornado um problema menor, inclusive no discurso da mídia que sempre insistiu nesse ponto. De repente, a concepção de “gasto” público parece ter mudado.

O que justifica tudo isso? Em uma palavra, a vida. Desde que um novo vírus que declarou guerra contra a humanidade, nos tornamos uma espécie em risco de extinção. Ainda no início da pandemia, Jeremy Rifkin advertia que estávamos lidando, concretamente, com o problema da extinção da humanidade. A extinção da espécie humana havia começado, embora não fosse a pandemia de Covid-19 que fosse levá-la a cabo. Encontraríamos meios de sobreviver a esta pandemia, como de fato já encontramos (é o que mostram países como, por exemplo, a Austrália e a Nova Zelândia). Entretanto, seria possível depreender do modus operandi do novo coronavírus um modelo geral da extinção da espécie humana: um vírus, que surgiria de maneira inesperada e se alastraria rapidamente por todo o planeta… Daí a importância do aprendizado que estamos tendo com esta experiência: aprendendo a lidar com esta ameaça, estaremos aptos a lidar com outras. 

Mas o que foi mesmo que aprendemos até agora? Slavoj Zizek argumentou, recentemente, que o combate à pandemia implica a mobilização de todos, inclusive os mais egoístas, tendo em vista salvar as próprias peles. Com isso, a palavra-chave se torna “solidariedade”. Mas não se trata de qualquer solidariedade, e sim de uma solidariedade universal, que se efetiva como uma nova forma de cooperação global, capaz de superar as maiores formas de cooperação que conhecíamos até então, no sentido da promoção da vida. A ideia de Zizek é usar a capacidade de cooperação que aprendemos no combate ao novo coronavírus, para outros fins, notadamente, para a superação do mercado e do Estado.

É isso mesmo? Tanto a perspectiva de Rifkin quanto a de Zizek apontam para um futuro relativamente distante. Porém, há algo que estamos aprendendo com o combate à pandemia que é mais imediato, presente, em ato. Com efeito, trata-se de um modelo, mas não do modus operandi do vírus, e sim da estrutura e do funcionamento da forma de cooperação, que torna possível combatê-lo. E que cooperação é essa?

Ora, as políticas de combate à Covid-19 constituem, no sentido de Foucault, uma tecnologia de governo. Isso quer dizer que elas constituem um amplo dispositivo de saber e de poder, que exerce, de maneira altamente eficaz, funções de incitação, controle, vigilância, segurança, regulação, enfim, de governo da espécie humana, para garantir que esta continue viva, de uma maneira determinada. É nesse sentido que o combate à pandemia não visa somente o vírus. Ele implica, sobretudo, o governo dos seres humanos. Assim, parece que estamos diante de um modelo novo, mas trata-se de um novo modelo de poder, que se exerce, com espantosa eficiência, sobre toda a população humana. Em outras palavras, embora a pandemia do novo coronavírus ainda esteja longe de acabar, uma reflexão já pode ser feita: talvez as técnicas de poder e práticas de governo nunca tenham se mostrado tão abrangentes e eficientes.

Em sua implementação, tal governo implica a construção de saberes especializados e de aparatos técnicos profissionalizados, mas também implica a formação de uma racionalidade governamental específica. Tanto esses saberes quanto essas técnicas e essa racionalidade, em grande parte, já existem e, muito provavelmente, sobreviverão à erradicação do novo coronavírus. Ora, o alvo de um tipo de governo pode mudar e a aparelhagem técnica permanecer, basicamente, a mesma.

Quanto a isso, vale lembrar algo que Foucault narra na História da loucura. Até o final da Idade Média, os leprosos eram simplesmente expulsos dos muros das cidades. Já na Idade Clássica, com as demarcações territoriais dos Estado nacionais, surgem os leprosários, isto é, asilos em que os leprosos viviam e eram tratados, no interior das cidades. Com o desenvolvimento da medicina, a lepra é erradicada da Europa, em meados da Idade Clássica. Seria de se esperar que, com o fim da lepra, os leprosários também deixassem de existir. Mas não foi o que ocorreu. Os leprosários continuaram a funcionar, agora, porém, como hospícios. E o louco assumiu o lugar do leproso como alvo dos cuidados. Portanto, o alvo mudou, mas a tecnologia de saber-poder em funcionamento permaneceu, basicamente, a mesma.   

Por fim, podemos perguntar: o que será do aparato de combate à Covid-19 quando a pandemia terminar? É muito provável que ele continue a existir, promovendo uma forma bizarra de solidariedade universal, em que os indivíduos e a espécie humana são governados, “em defesa da vida”.